Embriaguez ao
volante, morte e a incansável busca do legislador pela adequação típica da
conduta
Artigo de Francisco Sannini Neto
Canal Ciências Criminais
Por Eduardo Luiz Santos Cabette e Francisco Sannini Neto –
Foi publicada no dia 19.12.2017, ao apagar das luzes, a Lei 13.546/17, que, uma
vez mais, alterou o Código de Trânsito Brasileiro no intuito de adequar algumas
condutas – que geram enorme repercussão social – ao nosso ordenamento jurídico,
especialmente no que se refere aos casos de “acidentes” provocados por
motoristas em estado de embriaguez.
Não é de hoje que o legislador ordinário vem buscando,
através do Direito Penal, prevenir e reprimir condutas sabidamente deletérias à
segurança viária.
É, de fato, lamentável que o baixo grau de civilidade do
povo brasileiro faça com que haja a necessidade de que tudo seja perfeitamente
regulamentado, inclusive através da criação de crimes.
Há quem diga, por exemplo, que os radares eletrônicos, os
chamados “pardais”, tenham colaborado com a moralização do trânsito. Contudo,
numa análise filosófica da questão, fica evidente que isso não é verdade, como
bem ensina o professor Clóvis de Barros Filho.
De acordo com o filósofo, só se moraliza algo quando se dá
ao outro a oportunidade para soberanamente escolher, decidir e deliberar a
velocidade que vai imprimir ao seu veículo.
Neste sentido, completa o professor: “o papel civilizador da
sociedade; o papel moralizador da sociedade, é ensinar para os seus filhos por
que é preciso maneirar na velocidade, para que possam eles, moralmente, decidir
por andar em velocidades compatíveis”.
Com efeito, conclui-se que, na verdade, os radares expõem a
desmoralização do trânsito, uma vez que o comportamento do motorista não é
pautado por valores morais, de livre escolha, mas por uma imposição do sistema.
Por óbvio, todo cidadão tem ciência dos riscos trazidos pelo
seu comportamento imprudente, seja ao dirigir em velocidade incompatível com a
via ou em condições de embriaguez. Não obstante, considerando que o povo
brasileiro ainda precisa evoluir muito em termos de valores éticos e morais,
torna-se, infelizmente, imprescindível o recurso ao Direito Penal com o
objetivo de mitigar o cenário trágico que envolve o nosso trânsito.
Feitas essas considerações, lembramos que a saga do
legislador no combate aos “acidentes” causados pelo uso do álcool e outras
substâncias psicoativas, ganhou uma nova fase com o advento da Lei 12.760/12,
que alterou o artigo 306, do CTB, viabilizando, assim, a responsabilização
penal de motoristas que dirigissem nessas condições.
Destaque-se que antes dessa alteração a embriaguez só
poderia ser constatada por meio do exame de etilômetro (“bafômetro”) ou exame
de sangue. Ocorre que tais meios de obtenção de provas dependiam exclusivamente
da colaboração do motorista.
Assim, tendo em vista que a Constituição da República e o
Pacto de São José da Costa Rica garantem o direito do indivíduo de não produzir
provas contra si mesmo (princípio do nemo tenetur se detegere), era muito
difícil a comprovação do estado etílico.
Ocorre que a “Nova Lei Seca” (Lei 12.760/12) promoveu
mudanças sensíveis no tipo penal do artigo 306, CTB, permitindo, em linhas
gerais, que o estado de embriaguez fosse comprovado por diversos meios, tais
como exames de alcoolemia, vídeos, testemunhas ou outras provas admitidas pelo
ordenamento jurídico, o que, evidentemente, tornou mais viável a punição nessas
hipóteses.
Posteriormente, considerando os inúmeros casos de morte no
trânsito causados por motoristas embriagados, surgiu a Lei 12.971/14, que
alterou, entre outros pontos, o artigo 302, do CTB, que trata do crime de
homicídio culposo na direção de veículo automotor.
Foram acrescidos dois parágrafos ao dispositivo, sendo que o
§1º criou algumas causas de aumento de pena e o §2º estabeleceu uma
qualificadora para o agente que causasse morte no trânsito devido à alteração
de sua capacidade psicomotora pela influência de álcool ou outra substância que
determinasse dependência ou, ainda, em razão de haver participado, na via
pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada.
De pronto, verificou-se a falha do legislador na edição da
Lei 12.971/14, pois, se a ideia era punir de forma mais rigorosa os autores de
homicídio culposo nessas circunstâncias, o “tiro saiu pela culatra”.
Tal conclusão era subsidiada pelo fato de que a
qualificadora em questão apenas alterou a natureza da sanção penal imposta em
relação ao caput, do artigo 302, passando de pena de detenção para a de
reclusão, provavelmente no intuito de viabilizar o regime inicial fechado no
caso de reincidência.
Demais disso, lastimou-se na época que o “estrago”
legislativo não se limitou à ausência de uma necessária sanção penal mais
rigorosa para motoristas bêbados e altamente inconsequentes.
Isso porque, ao concentrar como qualificadora a
circunstância do motorista encontrar-se embriagado, o novo texto trazido pela
Lei 12.971/14, retirou a autonomia do delito de “embriaguez ao volante” em
relação ao homicídio culposo, entendimento até então majoritário, que
viabilizava o concurso entre os dois crimes e propiciava o aumento da
reprimenda estatal, tanto pela somatória das penas (para aqueles que
consideravam se tratar de concurso material), quanto pelo sistema da
exasperação (para os filiados à tese do concurso formal).
Mas a maior “barbeiragem” do legislador foi verificada na
mudança promovida no artigo 308, do CTB, onde encontra-se o crime de
“participação em racha”. A Lei 12.971/14 criou uma qualificadora no artigo 308,
§2º, para o caso de morte culposa decorrente desse tipo de competição não
autorizada na via pública, o que conflitava com o artigo 302, §2º, já
destacado, que apresentava os mesmos elementos típicos.
O mais inacreditável de tudo isso é que o citado erro
grosseiro quanto às qualificadoras do art. 308 já havia sido devidamente
indicado durante a tramitação do Projeto de Lei que originou a Lei nº
12.971/2014 (Projeto nº 2592/2007), em relatório da Comissão de Constituição e
Justiça e Cidadania, com trecho abaixo transcrito:
Todavia vislumbramos que no Projeto original encontra-se uma
incongruência de natureza redacional. Ora a parte final do § 2º do art. 302 e o
disposto no art. 308, ambos alterados pelo Projeto de Lei nº 2.592-A/07,
aprovado na Câmara dos Deputados em 24/4/2013, existe duplicidade de condutas
típicas, pois, em acatando emenda de Plenário, esqueceu o Relator de verificar
que o fato já estava tipificado em outro dispositivo (grifamos).
Em decorrência disso, o §2º, do artigo 302, CTB, acabou
sendo revogado pela Lei 13.281/16, o que fez com que se retomasse o cenário
jurídico existente antes da desastrosa Lei 12.971/14, ou seja, o crime de
homicídio culposo na direção de veículo automotor voltou a admitir o concurso
com o crime de embriaguez ao volante, e a morte culposa ocorrida em virtude de
participação em racha passou a encontrar adequação típica perfeita no artigo
308, §2º, do CTB.
Quando parecia que a polêmica havia se encerrado, surge a
Lei 13.546/17, alterando novamente o CTB para inserir figuras qualificadas nos
seus artigos 302 e 303, além de outras inovações.
Em consonância com o §3º, acrescentado ao artigo 302, do
CTB, pela Lei 13.546/17:
se o agente conduz o veículo automotor sob a influência de
álcool ou de qualquer substância psicoativa que determine dependência: Penas –
reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter
a permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor.
Já o §2º, do artigo 303, CTB, prevê o seguinte:
A pena privativa de liberdade é de reclusão de dois a cinco
anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo, se o agente conduz
o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool
ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime
resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima.
Nota-se, de pronto, que a qualificadora do homicídio culposo
exige apenas que o agente esteja “sob a influência de álcool ou de qualquer
substância psicoativa que determine dependência” (grifamos), enquanto a
qualificadora da lesão corporal culposa estabelece a necessidade de que o
motorista esteja “com a capacidade psicomotora alterada em razão da influência
do álcool” (grifamos).
Diante disso, parece que o legislador teve a intenção de
exigir apenas o consumo de bebida alcoólica ou outra substância que cause
dependência para a caracterização da qualificadora do §3º, do artigo 302, CTB,
dispensando, por outro lado, tratamento mais rigoroso na constatação do estado
do agente na qualificadora do §2º, do artigo 303, uma vez que se exige a
alteração da capacidade psicomotora.
Não temos dúvidas de que vão surgir entendimentos no sentido
de que na qualificadora do homicídio culposo bastaria se comprovar a ingestão
da substância, o que, por óbvio, tornaria muito mais viável a responsabilização
penal do agente. Se uma testemunha confirmasse o uso de bebida alcoólica, por
exemplo, já restaria caracterizada a qualificadora.
Data máxima vênia, mas não é essa a nossa visão. Parece-nos
que o legislador se equivocou na redação do dispositivo movido por uma ânsia
punitivista que fere não apenas os princípios da legalidade e da
proporcionalidade, mas também a própria segurança jurídica.
Ora, se o agente consumiu uma cerveja 04 horas antes do
crime, estaria ele “sob a influência” da bebida? E se a ingestão ocorreu na
noite anterior, mais de 12 horas antes do crime, ele estaria “sob a influência”
do álcool?
Na linha de Rogério Sanches, entendemos que a distinção
feita pelo legislador não tem cabimento, sendo indispensável, em qualquer caso,
a constatação da alteração da capacidade psicomotora do agente (Resolução do
CONTRAN 432/13).
Isto, pois, a própria razão de se punir a conduta de dirigir
embriagado ou sob o efeito de drogas ilícitas reside no fato de que o consumo
dessas substâncias pelo agente afeta a sua capacidade para a condução do
veículo automotor, podendo, consequentemente, dar causa a acidentes no
trânsito, o que coloca em risco toda a coletividade.
O entendimento contrário também ofende o princípio da
legalidade, no seu aspecto que exige um mandado de certeza na redação de tipos
penais, pois sem a adoção dos procedimentos adequados previstos na Resolução do
CONTRAN jamais se poderia saber se o consumo dessas substâncias efetivamente
comprometeu a capacidade psicomotora do motorista.
Como último argumento, entendemos que a interpretação
diversa da aqui esposada fere de morte o princípio da proporcionalidade. Isto,
pois, não teria cabimento se exigir a comprovação da alteração da capacidade
psicomotora para um crime mais brando, como a lesão corporal culposa
qualificada (art.303, §2º) ou mesmo a embriaguez ao volante (art.306, CTB) e
abrir mão dessa constatação no crime cujas penas são mais severas (art.302,
§3º, CTB).
Feitas essas colocações, advertimos que a redação do §2º, do
artigo 303, do CTB, também pode suscitar interpretações diversas na doutrina.
Alguns podem argumentar que o crime seria qualificado independentemente do
estado de embriaguez do agente, bastando, para tanto, que ele tenha dado causa
a uma lesão corporal culposa de natureza grave ou gravíssima, nos termos do
artigo 129, §§ 1º e 2º, do CP.
Não é esse o nosso entendimento. Pensamos que a
qualificadora em questão só se caracteriza quando o agente estiver embriagado
(ou sob o efeito de outra substância psicoativa que cause dependência) e, por
conta disso, provoque um acidente que resulte em uma lesão corporal culposa de
natureza grave ou gravíssima.
Note-se que na redação do dispositivo o legislador se valeu
da conjunção aditiva “e”, razão pela qual, exige-se a constatação das duas
hipóteses fáticas descritas no tipo.
Isso significa que se o motorista estiver embriagado e
provocar uma lesão corporal de natureza leve, não se aplica a qualificadora,
podendo, todavia, responder pela embriaguez ao volante (art.306) em concurso
com a lesão corporal leve (art.303, caput), situação que, vale lembrar,
inviabiliza a concessão dos benefícios da transação penal, da composição civil
dos danos e faz com que o crime de lesão corporal se torne de ação penal
pública, nos termos do art.291, §1º, CTB.
Uma inovação interessante trazida pela Lei 13.546/17 foi a
alteração no artigo 308, CTB, para incluir na sua descrição típica as condutas
de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor. Antes
punia-se somente as condutas de participar, na via pública, de corrida, disputa
ou competição automobilística não autorizada, sendo que a exibição ou a
demonstração de perícia no veículo caracterizava apenas a contravenção penal de
direção perigosa (art.34, LCP).
Por fim, o projeto que resultou na Lei 13.546/17 pretendia
inserir dois parágrafos no artigo 291, do CTB, mas o §3º acabou sendo objeto de
veto presidencial. Segundo o dispositivo:
Nos casos previstos no § 3o do art. 302, no § 2o do art. 303
e nos §§ 1o e 2o do art. 308 deste Código, aplica-se a substituição prevista no
inciso I do caput do art. 44 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940
(Código Penal), quando aplicada pena privativa de liberdade não superior a
quatro anos, atendidas as demais condições previstas nos incisos II e III do
caput do referido artigo.
Nas razões do veto ponderou-se o seguinte:
O dispositivo apresenta incongruência jurídica, sendo
parcialmente inaplicável, uma vez que, dos três casos elencados, dois deles
preveem penas mínimas de reclusão de 5 anos, não se enquadrando assim no
mecanismo de substituição regulado pelo Código Penal. Assim, visando-se evitar
insegurança jurídica, impõe-se o veto ao dispositivo.
Sobre esse ponto são lapidares as lições de Rogério Sanches:
O veto é apenas parcialmente procedente, pois, no caso do
homicídio culposo, apesar da quantidade da pena a substituição poderia ocorrer
porque, segundo dispõe o art. 44, I, do CP, nos crimes culposos a substituição
é cabível independentemente da pena aplicada (e não incide o requisito de que o
crime deve ser cometido sem violência ou grave ameaça a pessoa).
No que concerne ao art. 308, no entanto, de fato a
substituição não seria cabível, pois, tratando-se de figura preterdolosa (o
agente tem o propósito de participar de uma competição ilegal e causa a morte
involuntariamente), seria necessário que fossem obedecidos os mesmos requisitos
do crime doloso, pois antes de integralizar-se o resultado culposo realiza-se,
por completo, um crime doloso.
Diante dessas conclusões, percebe-se que as “barbeiragens”
não se restringem ao trânsito e ao Poder Legislativo, atingindo, ainda, o
próprio Poder Executivo. De fato, não havia qualquer razão para se vetar a
possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de
direito nos crimes culposos.
Sem embargo, considerando que as regras do Código Penal se
aplicam subsidiariamente ao CTB, não vemos óbice na concessão do benefício,
desde que observados os requisitos legais.
Já o §4º, acrescido pela nova lei ao artigo 291, estabelece
que o juiz fixará a pena-base segundo as diretrizes previstas no artigo 59, do
Código Penal, “dando especial atenção à culpabilidade do agente e às
circunstâncias e consequências do crime”.
Aqui ficamos com a impressão que o legislador pecou pelo
excesso, haja vista o artigo 59, do CP, já deve ser aplicado no momento de
fixação da pena-base, o que, data vênia, torna esse novo dispositivo
desnecessário devido a sua redundância.
Uma última observação relevante diz respeito à utilização
banalizada do reconhecimento do “dolo eventual” em detrimento da “culpa
consciente”, especialmente em casos de homicídios no trânsito quando o autor
estava embriagado. A alteração legal certamente coloca um freio a esse tipo de
interpretação estandardizada.
A verdade é que a regra (até mesmo por aplicação do
princípio “in dubio pro reo”) é o reconhecimento da culpa consciente. É o apelo
midiático que leva muitos operadores do direito a banalizar a tipificação da
conduta como dolosa (dolo eventual) de forma apriorística e sem a devida
reflexão. A alteração legal não impede a ocorrência de dolo eventual e até de
dolo direto em casos que envolvam veículos automotores.
No entanto, parece deixar mais claro que a regra é a culpa
consciente, apresentando uma reprimenda legal mais adequada, a diferenciar
aquele motorista imprudente, negligente ou imperito, mas que não está ébrio na
hora do acidente, daquele que se acha embriagado e, portanto, tem uma
culpabilidade certamente mais intensa (característica da culpa
consciente).
Por fim, destaque-se que a Lei 13.546/17 prevê um período de
vacatio legis de 120 dias, entrando em vigência no dia 18 de abril de 2018.
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REFERÊNCIAS
BARROS FILHO, Clóvis de. Moral e Ética. Aula 1. Brasília,
2003. Disponível aqui.
CUNHA, Rogério Sanches.
Lei 13.546/17: Altera disposições do Código de Trânsito Brasileiro.
texto original em https://canalcienciascriminais.com.br/embriaguez-volante-morte-legislador/